O sino na igreja dobrava a sua triste melodia. O rei, Dhajako o justo, como era chamado nas ruas, estava morto.
O povo reuniu-se na rua, durante dias chorou a morto do principal responsável pela paz e prosperidade do reino. Era amado.
Os dois filhos do rei foram chamados, das terras que governavam, para o funeral, a última despedida a que teriam direito.
Kaljako e Bhanjako. Irmãos. Príncipes. Órfãos.
Kaljako chegou primeiro. Do pai tinha herdado os olhos negros como o breu, os ombros largos e poderosos e, acima de tudo, o direito a ser rei. Era o primogénito.
Bhanjako tinha herdado menos, menos o reino, menos os ombros poderosos, apenas os olhos negros. Em mais nada eram semelhantes os dois homens que o destino uniu por sangue.
O sino continuava a tocar, com um ritmo triste e pausado, era a música de fundo para as lágrimas do povo.
O coveiro fez o seu percurso. Atravessou a cidade, do castelo ao cemitério. Vestia a capa negra, como manda a tradição, fez o caminho de forma calma, orgulhosa, sendo aplaudido polo povo. Seria ele e, apenas ele, quem poderia estar presente no funeral do rei. Manda a tradição que apenas o coveiro mais velho e experiente esteja junto da família real durante o funeral. O seu rosto deve estar tapado, escondido, dos herdeiros de sangue azul, mas todo o trabalho é feito por ele. É uma grande honra.
Na rua há lágrimas. Muitas, a maioria, pelo rei, outras, pelo fumo que ainda habita as fronteiras do reino. O incêndio, ninguém sabe bem como começou, apenas se sabe que levou a vida do rei. Queimado e desfigurado, foi assim que a morte reclamou o maior dos reis. Eram estes os desabafos tristes do povo.
Dois guardas cruzam lanças à porta do cemitério. O coveiro e os príncipes já estão nos seus lugares. Tudo pronto. O sino parou. Silêncio, arrepiante, invade tudo e todos. O rei é lembrado em orações.
A capa esconde o seu corpo, mas não esconde a idade. O coveiro mais velho, o que veste de negro hoje, continua de forma lenta e pausada a cavar a sepultura do seu soberano. As mãos, a única parte visível do seu corpo, mostram um homem cansado, mas determinado, frágil, mas nem por isso menos firme. Ele continua o seu trabalho. Ao som da conversa dos dois príncipes.
- Maldito seja este costume. – Dizia Kaljako – este velho vai demorar horas a cavar. – Suspirou de frustração
- Até na morte ele nos atrasa. Velho maldito. – Desdenhava Bhanjako
Um irmão ofereceu ao outro uma bebida. Ambos beberam, sorriram, riram e conversaram sobre diversos temas, enquanto o coveiro seguia o seu trabalho. Cansado, mas determinado.
- Vais ficar com a coroa? – Perguntou o mais novo
- Claro! Dentro em breve espero ter vendido aos glundianos metade das terras para lá do castelo. Assim, evito uma guerra e livro-me de metade das bocas que atormentam o reino com fome.
- O velho daria voltas no túmulo – troçou Bhanjako – Espera, será que está? – Enquanto ria histericamente ao olhar para a liteira onde o corpo do seu pai estava, queimado e desfigurado, apenas reconhecível pela pedra cor-de-rosa que o seu anel orgulhosamente exibia.
Continuaram na partilha de copos e histórias, algumas nada agradáveis, sobre as atrocidades que cometeram nas suas terras.
O coveiro terminou o seu trabalho. Ficou, como manda a tradição, parado junto ao corpo. Sem uma palavra, à espera que os príncipes levassem o corpo do pai para a sua última morada.
- Bem, vamos acabar com isto de vez – dizia Kaljako – Há uma criada bem novinha no castelo que quero experimentar. Ainda nem mamas tem. – Sorria para o irmão.
- Ah, são as melhores. Nem sabem o que estão a fazer, à espera que tenhamos piedade delas se agradarem. – Um brilho louco estava estampado no seu olhar – mato-as sempre. Sou um lamechas, não sou irmão?
As atrocidades ditas pelos filhos do rei, seriam suficientes para uma revolução, uma carnificina nas ruas, mas o coveiro estava proibido de dizer uma palavra sobre o que tinha visto. Assim era a tradição.
Os irmãos agarraram, nada respeitosamente, o corpo do pai. Atiraram o mesmo para a cova, pouco funda, que o velho coveiro tinha aberto. Ambos cuspiram no cadáver. A maior das desonras aos mortos.
Um reboliço agitou a entrada do cemitério. O som de espadas a faiscar uma contra a outra, aterrorizou os irmãos.
Silêncio, novamente silêncio.
Uma figura. Um homem, jovem, caminhava em direcção à cerimónia fúnebre.
- Quem pensas que és para interromper o funeral do nosso pai, mensageiro? – Silvou o primogénito
O homem nada disse. Sem uma palavra, atirou uma rosa amarela para junto do corpo do rei.
- Não ouviste o novo rei? – Perguntou o eterno príncipe
Miljako, mensageiro e homem de confiança do rei, chorava. Estava fora, em missão, quando soube da notícia. O rei, o seu rei, estava morto. Um incêndio, chamas malditas tinham reclamado o seu mentor, o homem que o inspirava a ser melhor. Os inspirava a todos.
- Ele gostava mesmo do velho – disse um irmão ao outro – patético. Mas, o que se podia esperar de um bastardo, filho de uma meretriz?
- Miljako, se eu fosse mais velho, até te deixava que me chamasses pai, de tantas as vezes que tive a rameira da tua mãe na minha cama – dizia Kaljako
Ódio puro emanava dos olhos verdes de Miljako, a vontade, a dele, era dos matar ali. Ainda fez menção de levar a mão à espada e acabar com os dois príncipes. Mas por respeito ao seu rei, virou costas e começou a caminhar de volta à turba silenciosa.
- Miljako, espera! – Disse uma voz familiar, dentro da capa de coveiro.
Olhares surpreendidos foram trocados pelos dois irmãos.
O coveiro, não era um coveiro. Era o rei Dhajako.
Tudo não passara de uma armadilha, para comprovar o carácter dos filhos.
Não se sabe bem o que aconteceu depois da revelação da identidade do homem. Apenas se conta, murmura, que os príncipes estão algures, presos, por ordem do rei. Miljako, o mensageiro, foi adoptado pelo seu mentor. Viria a ser rei.
É esta a lenda do rei Dhajako. O rei que voltou dos mortos para proteger o seu povo dos próprios filhos.
Por: Miguel Brito
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