Não sei quanto tempo passou, penso que ando a desmaiar, mas os pensamentos são incoerentes, fogem, dançam como que a zombar da minha confusão.
Frio. Sinto frio. Sei que estou nu, sei que estou preso e sei que estou deitado num chão velho e poeirento. Uma pequena luz invade o quarto, cela, onde quer que me tenham colocado. Vejo um arbusto que abana loucamente rendido aos caprichos do vento.
Oiço um barulho, leve, como se alguém estivesse a bater numa parede distante. Não tenho a certeza. Tento recordar como cheguei até aqui, Principalmente onde é o aqui.
Sinto água a escorrer pela minha cara, está fresca, mas com sabor a mofo. Enjoa-me. Acabo por vomitar.
Acordo com um cheiro azedo, volto a tentar perceber onde estou. É de dia. Oiço o trânsito normal de uma grande cidade. Pessoas que prosseguem a sua vida, normalmente, enquanto eu estou na situação mais anormal da minha vida.
Acordo com a cabeça a latejar. As dores são fortes, mas o raciocínio está mais claro. Já sei onde estou, pelo menos onde penso estar. Oiço um som. Finjo que estou a dormir.
Através de uma minúscula abertura das pálpebras, vejo uma imagem estranha. Um homem, julgo ser um homem, usa uma máscara de demónio, daqueles que se vê nas noites de Halloween. Assusta-me. O coração bate rápido, alerta. Pela primeira vez percebo, realmente, o perigo mortal em que me encontro.
O monstro, nome que lhe dei para fornecer algum equilíbrio mental, assobia uma qualquer canção infantil. Não que conheça, mas o ritmo só pode ser de uma canção infantil.
Vejo-o parado a olhar para mim. O meu coração acelera feito louco, mas não mostro estar consciente. Há algo naqueles olhos, única parte visível do seu rosto, que me assusta. Há maldade neles. Há morte.
Fecho totalmente os olhos, como quando era criança e levava os cobertores à cara para fazer os monstros desaparecerem. Que falta me faz o cobertor agora.
Oiço a porta a bater. Um som metálico indica que uma chave a fecha.
Tento organizar os meus pensamentos. Tenho medo do que posso recordar, mas é a única alternativa.
Recordo-me do comboio. Do riso dos meus amigos, incitando-me a aproveitar a noite para me esquecer dela. Sorrio e digo que sim, sabendo que nada, por agora, me fará esquecê-la. Quem nem vontade de viver tenho.
Lembro-me de percorrer as ruas de Viena a pensar nos seus famosos cafés. Cruzo-me com uma jovem, fico de queixo caído. Os seus olhos verdes são como esmeraldas na montra de uma joalharia, combinando com o ouro dos seus cabelos. Viena. Também conhecida por mulheres lindíssimas.
Uma forte dor de cabeça interrompe o esforço de memória que estava a fazer. Desisto. Descanso.
Novamente sou acordado por aquele homem mascarado, desta vez não finjo que estou a dormir. Grito. Choro. Imploro. Ameaço. Tudo em vão. Aquela estranha figura fica apenas a olhar para mim. Percebo que há algo de errado com ele. A forma como movimenta as mãos, indicam uma deficiência qualquer. Ainda aumenta o meu receio. Vejo-o partir. Sem saber se aliviado ou aterrorizado. Sei que vai voltar.
Concentro-me, tento regressar às minhas memórias.
Lembro-me de continuar o caminho, sem saber bem para onde ir. Queria apenas diversão, nada mais. Bem, não é verdade. Queria sim o bálsamo para a dor que me atormentava. Não há dor como aquela em que se perde um amor.
Vejo um bar de aspecto curioso. Duas figuras grotescas, fazem lembrar gárgulas, estão a ladear a entrada vazia e suja. Penso duas vezes, olho para trás, mas decido avançar. Chega de ter medo.
Sinto uma diferença na temperatura, calor, bem-vindo. Entro e peço uma bebida e depois outra. Acabo por me sentir agitado, alcoolicamente bem-disposto.
Não me recordo dos motivos, mas vejo-me a enfrentar um tipo qualquer. Não percebo uma palavra do que ele diz, mas o seu olhar impõe respeito. Ainda assim, como prometido, chega de ter medo.
Mais fácil dizer do que fazer. Lembro-me de estar a correr, perdido entre ruas estreitas e vazias ou outras enormes e agitadas. Não sei o que fiz, mas ele não desiste. Corre e eu corro também.
Enquanto olho para trás, embato contra alguém. Olho em frente, assustado, e reparo numa idosa que por milagre não foi ao chão. As suas compras estão todas espalhadas, fico indeciso entre a ajudar, desculpar-me ou fugir. Olho para trás.
O meu perseguidor está ali, a olhar para mim. Recua, desiste. Penso que não quis armar confusão ao lado da idosa.
Apresento-me e fico a saber que se chama Ingrid e que eu tinha acabado de derrubar o jantar do seu gato Angel.
Ofereço-me para a ajudar a levar as compras para a casa dela. Primeiro rejeita, como que assustada, depois, relutantemente, aceita.
Fazemos a curta viagem a trocar poucas palavras sobre a cidade e os seus perigos.
Oiço um grito. Alguém em total desespero. Depois outro grito, mais fraco, abafado, como se tivesse morrido à nascença. Percebo que não devo ser o único.
Faço um esforço, desesperado, para me lembrar do resto.
Chegamos à porta. Ofereço-me para ajudar a levar as compras para cima. O olhar da mulher nem permite discussão. Não está disposta a deixar um estranho subir.
Fico a vê-la colocar a chave à porta do prédio, as mãos tremem, cansadas ou doentes, e impedem a velhota de realizar a simples tarefa. Olha para mim, meio com vergonha, meio com desespero. Ofereço-me para abrir a porta, ela aceita. Pergunto se não quer que leve as compras para cima, desta vez aceita. Penso que receia não conseguir abrir a porta de casa.
Coloco a chave à porta, oiço o som metálico, antigo, a permitir a nossa entrada. Algo me incomoda. O cheiro. Um odor agridoce invade o ar. É um cheiro que me faz lembrar algo, apenas não consigo situar o quê.
Oiço um ronronar e conheço o famoso Angel, o gato. É preto, brilhante e com olhos verdes, pergunto-me se em Viena tudo o que é belo possui olhos verdes?
Diz-me para ficar à vontade, e aponta a sala de visitas. A casa é velha, com o tal odor que me incomoda, mas há algo de misterioso. Há figuras de formas estranhas, diabólicas mesmo, espelhadas pela casa. A mulher era uma excêntrica, só podia.
Entro na sala e o piano branco capta a minha atenção. Fico maravilhado com o brilho e a beleza de fantástico instrumento.
Sinto algo a roçar nas minhas pernas, o gato, enquanto oiço a velhota a entrar na sala.
Convida-me para jantar e afirma não aceitar um não como resposta. Diz-me que já não se fazem jovens bem formados como eu e que o segredo para o bem-estar dela é uma boa alimentação. Aceito o convite.
A idosa oferece-me um prato se sopa. O cheio é hediondo. Mas o sabor, apesar de grumoso não é mau. Salgado.
Sinto o coração a acelerar. A mente fecha-se, não quer continuar a relembrar. Sinto que estou perto de resposta.
Ainda não estou a meio do prato quando começo
Dores de cabeça enormes. Fecho os olhos, massajo a têmpora, tentando diminuir a pressão que sinto. É como claustrofobia dentro do meu próprio cérebro. Não devia insistir, sei disso, mas preciso de saber a resposta.
Ainda não estou a meio do prato quando começo a ficar zonzo. Apago. Não me recordo de mais nada. A princípio, depois, lembro-me de ser arrastado por uma estranha figura, mascarada. Parece um demónio, mas aqueles olhos são mesmo de demónio.
Enquanto sou arrastado, vejo um corpo no chão da cozinha. Calculo que acabei de comer o que falta do mesmo. Os vómitos sobem à garganta, ficam espalhados pelo chão e pelo meu cabelo.
Sou atirado para um quarto minúsculo, sinto-me a bater com força no chão. Fico tonto. Apago.
As lágrimas correm pelo meu rosto. Agora sei que aquele brutamontes não quis evitar um confronto nas ruas da cidade, quis evitar a velha.
Recordo o resto dos meus amigos. Recordo o resto os meus pais. Recordo o resto dela.
Em breve, muito em breve, também eu irei ser parte da dieta saudável da velha Ingrid.
Aceito o meu destino. Não tenho como lutar contra ele.
Por: Miguel Brito
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