O nascer de um dia quente e agradável escondia a verdadeira história que se iria escrever.
De farda vestida percorro o caminho, gasto e vazio, tantas vezes feito, para o castelo. Sem o brilho no olhar que iluminava a primeira vez que o caminhei, de peito cheio, orgulhoso pela tarefa que cumpria.
Recordo-me como se fosse hoje. Não do primeiro dia de trabalho, do início de tudo.
A religião, claro, levou o mundo a um ponto de ruptura. O que se seguiu foi o esperado, nada de anjos ou de paraísos. Morte. Apenas e só a morte.
A população mundial definhava, África foi irradiada do mapa. Os primeiros a pagar a factura das loucuras cometidas em nome de um poder superior.
Os Estados Unidos, outrora protectores do mundo, foram arrasados, destruídos por fundamentalistas mais preocupados com um livro velho e poeirento do que com a sua própria vida.
O Vaticano tomou conta das operações. Tal como os cruzados de outros tempos, sangue foi derramado entre fiéis e infiéis de ambos os lados. Todos eles eram infiéis.
Não houve um vencedor. Na guerra nunca há vencedores, apenas vencidos.
O mundo inteiro perdeu. Sociedades desabaram, reergueram-se, para novamente tombarem perante falsos profetas da salvação.
O fim estava próximo, não que os quatro cavaleiros do apocalipse cavalgassem as ruas à procura de pecadores, mas os grupos organizados que aterrorizavam os sobreviventes, faziam com que esse parecesse melhor destino.
Como em todos os momentos decisivos da história, surge um salvador. Como sempre, um como não há memória, magnifico, puro e casto. Um ditador.
Sem políticas reconhecíveis, apenas proclamava a necessidade de ordem. O povo, inicialmente relutante, concordava com as ideias que o mesmo gritava aos quatro ventos.
Pouco a pouco, como uma nuvem de fumo que enche uma sala, ganhou espaço e poder. Poder. Palavra maldita nas mãos erradas. Será que alguma vez houve mãos certas?
O mundo é agora o seu quintal. Podre e esquecido, mas seu.
Milhões foram exterminados. Muitos outros foram escravizados. Tudo para bem do mundo, dizia ele. Todos os que podiam concordavam, esperançosos de escapar ao trágico fim que assolava os restantes.
Também eu concordava, não por medo. Por esperança.
Turquia. É aqui que as minhas lembranças se tornam turvas e amargas, que me levam ao inferno e um pouco mais abaixo.
Fui treinado, convencido de que era uma honra ser confiado com o maior tesouro do Ditador.
Inicialmente pensei que fosse guardar os amaldiçoados livros que continham o conhecimento proibido e pelo qual já tantos tinham morrido. Não, fui guardar algo muito mais proibido.
Mulheres. Se há algo que nem os ditadores ignoram, é o prazer do sexo. Este não era excepção, pelo contrário, era um predador.
Ainda me lembro do curto voo, agitado e conturbado, até à Roménia. Até ao emprego de sonho. Ao paraíso. Ao inferno.
Fui levado ao castelo, por um caminho novo, brilhante e limpo, que conduzia à porta dos escolhidos, os eleitos que iriam guardar o tesouro. Com um brilho de orgulho imenso instalado no meu olhar, enchi o peito com o ar do novo mundo.
Nunca me irei esquecer o trajecto que percorri após o fecho da porta metálica e pesada. Um longo corredor, fresco e bem iluminado. Pequenas janelas convidam os raios de sol a entrar, deixando o calor lá fora.
Enquanto caminhava, apenas o som dos meus passos e da minha pesada respiração enchia o lugar. Era como a noite mais escura passada num cemitério vazia de fantasmas dementes. Silêncio em estado puro. Aterrador.
Senti, ainda mais, o peso da responsabilidade quando vislumbrei aquela porta. Não era metálica mas sim de madeira. Tinha uma forma circular, como se fosse a rolha de uma garrafa de um qualquer líquido pecaminoso.
Dois companheiros estavam colocados à porta, vestindo o mesmo uniforme vermelho, cor do Ditador. Ambos pareciam irritados, algo que me deixou sorridente. Ninguém gosta de ficar à porta do paraíso e não puder entrar.
A rolha, como registei mentalmente, foi aberta. Um mundo de véus, cortinas, sofás e poltronas luxuosas, camas redondas e rectangulares explodiu à minha frente. A sala era gigantesca, surreal. Vi centenas de mulheres. Todas elas lindas, perfeitas.
O olhar recaiu, lascivo, numa jovem asiática. Não deveria ter mais de vinte anos. Era de uma beleza inexplicável. Os traços orientais do seu rosto pareciam perfeitas pinceladas de um qualquer génio da pintura. Tal beleza não podia ser real.
Foi apenas um exemplo dos muitos que me assombraram.
Vi centenas de belezas a desfilar à minha frente. Todas elas silenciosas, expectantes. Receosas.
Os primeiros dias foram vividos no fascínio carnal que apenas um homem adulto pode compreender. O tempo mudou esse fascínio para um sentimento bem diferente.
Os meses foram passando, trazendo chuva e vento ou uma suave brisa. Por vezes um calor infernal. Estações do ano que corriam apagando um pouco a minha ilusão de que o mundo estava parado. Como se o globo tivesse amuado como uma criança pequena e desistido de rodar sobre o seu eixo.
Já a tinha visto, claro. Seria impossível, passado tanto tempo, não ver uma daquelas mulheres. Mas algo ocorreu de diferente desta vez. Não sei se foi alguma expressão mais resignada na sua cara oval, clara como uma boneca de porcelana. Talvez algo no brilho triste das safiras que embelezavam o rosto. Percebi que o brilho de um olhar que se escondia por detrás de uma vida miserável, no seu esplendor, deixaria envergonhado o mais belo ovo Fabergé
Fui desperto dos meus devaneios quando o chefe do harém agredia, brutalmente, uma das concubinas a soldo.
Nesse instante todos os anos de treino para exercer esta função evaporaram como água turva de uma poça de verão. Sabia que nada disto era correcto. Mas um homem nada pode contra o mundo. E o dono da prisão era o dono do mundo.
Os dias foram passando, mais lentamente, e procurei formas de manter aquela mulher perto de mim. Não que a pudesse proteger, na verdade nem coragem teria de tentar, mas, tal como uma força superior, não me conseguia conter.
Acredito que com o tempo tenha sido perceptível, tanto para ela como para os outros guardas, mas não seria o primeiro tolo apaixonado por uma meretriz do mundo novo.
Passava os dias a controlar os meus impulsos, cada vez menos carnais, para não a poder prejudicar. Uma mulher era uma pechincha comparada ao custo de um guarda do meu nível.
Já não visitava os campos de treino, onde jovens, após verem vendida a sua virgindade por verbas exorbitantes, eram possuídas diariamente pelos guardas para se tornarem experientes nas artes da sedução. Um paraíso ao início.
Agora não afastava da minha mente a possibilidade de ela ter passado pelo mesmo, por um acto bárbaro que tantas vezes cometi. Aos 18 anos, eram consideradas prontas para a venda diária dos suspiros de quem as procuravam. Recebiam o colar vermelho, ornamentado com uma esmeralda ou safira. Uma peça de joalharia fantástica, que não passava de uma marca do destino que os novos deuses, donos do mundo, libertadores da opressão, tinham escolhido para elas.
Os dias assumiram um ritmo lento, triste e sufocante. Algo tinha mudado dentro de mim. O quê, não o sabia explicar.
Todas as semanas a via ser escolhida, levada a contra gosto. A sua cara apresentava os traços de alguém que já não acredita que valia a pena respirar. Como uma maria rapaz obrigada a frequentar ballet, os seus passos não possuíam qualquer graça, os movimentos do corpo não eram fluídos ou sedutores. Talvez fosse isso que agradasse a alguns dos senhores que compravam o seu corpo.
Semana após semana, eu morria mais um pouco.
Um dia, quando a vi chegar, com o cabelo atado num perfeito rabo-de-cavalo com a ponta descaindo para o ombro esquerdo, andando miserável, como que amaldiçoada, exibindo o colar com a safira que era ofuscada pelo brilho triste do seu olhar, sabia que tinha de tomar uma decisão.
Ponderei, durante semanas, como a ajudar. Os dias passavam agora a uma velocidade alucinante. E a chuva que lá fora fustigava o terreno montanhoso que circundava esta prisão carnal, não melhorava o meu estado de espírito.
Elaborei um plano. Mal calculado, mal concebido e a rasar o desesperado. Mas era o melhor que tinha e, principalmente, a única esperança para ela.
Nunca lhe tinha dirigido uma palavra, recusava-me a ser eu a escoltá-la sempre que passava por aquela porta. Na cumplicidade única de quem habita diariamente o inferno disfarçado de paraíso, entre nós, guardas, revezávamos as escoltas para evitar o sofrimento que habitava nos nossos corações de pedra.
Não sei quantos anos ela habitou aquela divisão maldita, recheada de quartos e de espaços comuns, com uma decoração lasciva e sufocante. As velas com cheiros aromáticos que queimavam diariamente, impregnava na pele o aroma artificial de flores que apenas nos sonhos podiam ver agora. As informações eram passadas à moda antiga, um papel com o número da concubina pretendida e qual a porta para onde deveria ser escoltada. Tudo sistemático, burocrático mesmo. Até na exploração este governo gostava de controlar tudo ao mais ínfimo pormenor.
Chegou o dia que pretendia. Apesar de toda a cumplicidade entre os guardas, uma fuga era uma possibilidade que nunca foi ponderada.
Ao receber o número dela, Karin era o seu nome, desloquei-me com ela à porta errada. Vi a surpresa no rosto dela quando me viu escolta-la, o seu olhar interrogava-se como quem questionava se também aquele, eu, teria desistido dela.
Ao mostrar a folha ao guarda, fui repreendido por a porta não se a correcta. Assenti, olhando para os seios parcialmente descobertos da meretriz como que desculpando a minha distracção com aquela visão. O guarda sorriu. A tal cumplicidade assume contornos diferentes entre os que guardam a porta do que julgam ser o paraíso ou daqueles que vivem no verdadeiro inferno encerrado entre aquelas paredes de decoração luxuosa.
Apontou a direcção das escadas para onde me deveria dirigir por forma a entregar a concubina ao guarda correcto. Pelo caminho, reuni toda a coragem em mim.
- Não há tempo para explicar. Quando virares à direita, vais encontrar no chão, por trás da estátua de bronze do guerreiro celta, um fato de criada. Veste-o sem demoras.
Não obtive o prazer de ouvir o som da sua voz, como se duvidasse se sonhava ou não, piscou os olhos rapidamente e assentiu.
Vestiu-se com destreza e rapidez, forçando-me a olhar para longe quando o seu corpo nu me provocava suores frios e arrepios em todo o corpo.
Aproximei-me. Vi que se encolheu, como uma presa que julga que apenas mudou de carcereiro. Quando viu a faca nas minhas mãos o seu rosto tornou-se ainda mais branco, se tal fosse possível. Como se as gotas de sangue se recusassem a habitar o rosto angelical que possuía.
- Calma – disse enquanto erguia as mãos em sinal de paz – Tenho de tirar-te a coleira ou vão perceber que não és uma simples criada.
Vi dúvida no seu rosto, como uma criança que não sabe se a pergunta do professor tem rasteira. Acedeu a que me aproxima-se, mantendo as mãos à volta do peito, abraçando-se com força como eu desejava abraça-la.
O colar cedeu com facilidade. A segunda parte do plano era mais complicada. No entanto, se resultasse, pelo menos uma vida poderia ser salva.
Levei a concubina vestida de criada até outro corredor. Ao chegar à frente do guarda indiquei-lhe que me deixasse passar. Face à sua cara de espanto e incerteza quanto ao que fazer, disse-lhe:
- Ouve bem meu estúpido – soltando uma quantidade considerável de saliva enquanto falava – apanhei esta cabra a roubar um dos colares das meretrizes. Vou leva-la a um quarto e mostrar-lhe o que se faz a quem usa estes colares. Tens alguma coisa contra?
Como se percebesse que era melhor para a sua saúde, ou talvez o receio que houvesse alguma verdade nas minhas palavras, Karin debateu-se, olhando o guarda com súplicas murmuradas.
- Não meu irmão – respondeu com um sorriso – faz o que tens de fazer e deixa essa ladra presa no quarto. Em breve vou dar-lhe a mesma lição que tu. Se quer um colar tem de o merecer – piscou-me o olho, cúmplice.
Sorri e passei em direcção aos quartos. Onde as crianças eram violadas. Entramos num que estava vazio. Pude ver o desespero no seu rosto, com ódio por ter sido enganada.
- Calma! – ergui novamente as mãos em sinal de paz – Tinha de dar uma desculpa credível. Agora vais passar por aquela janela – apontei para a paisagem de uma montanha circundada por uma planície cor de trigo – Vais seguir na direcção do pico da montanha. Irás levar contigo um burro e um cesto que deixei presos a aquela árvore – apontei de novo, tentando ter a certeza que ela me ouvia com atenção – se alguém perguntar, respondes que vais levar fardas dos seguranças ao armazém da destruição.
Vi que ela olhava para os locais que eu apontava com um receio em misto de puro estado de êxtase. A liberdade com que ela tinha tantas vezes sonhado, estava ali. À distância de um salto de uma janela.
- No burro irás encontrar um cesto com dinheiro e indicações sobre o que fazer. Segue-as e serás livre. – Sorri
- Porque me ajudas? – Parou ao ver o embaraço na minha cara – Porque arriscas a tua vida?
- Porque estes senhores do mundo não passam de vampiros. Seres do mal que ocupam as noites sugando a felicidade e a alegria das vossas vidas. São seres que nem uma estaca pode parar, talvez uma revolta, talvez um dia. Mas, para isso ser possível, são necessárias lendas, mitos e boatos. Algo que dê esperança aos outros, que mostre que é possível. Eu e tu. Nós vamos começar por mostrar que é. – Terminei olhando em volta, afastando o olhar dos seus olhos cintilantes.
Sem qualquer palavra, abraçou-me. Pude sentir as suas formas sedutoras contra o meu corpo abstinente. Não me senti tentado. Poderia ter possuído o seu corpo ali mesmo, sendo mais um dos que corromperam a sua alma. Mas a minha escolha estava feita e não passava de um amor platónico. Puro. Saudável, pelo menos para ela.
Sem demoras transpôs a janela que a separava dos horrores que tinha vivido para a liberdade que tanto ambicionava. Fiquei prostrado a ver as suas formas, decididas, avançando para a liberdade. Não traia quem era, pertencendo ao mundo que a rodeava sem qualquer dificuldade.
Fugi. Não por mim, o meu destino estava selado. A forca teria mais um cliente, um exemplo. Mas, era exactamente essa a minha escolha, ser um exemplo para que outros possam arriscar.
Passado um dia fui encontrado, nas ruínas de uma casa luxuosa que o tempo tinha derrubado. Fui condenado sem julgamento e não conheci juiz, apenas carrasco.
De farda vestida percorro o caminho, gasto e vazio, tantas vezes feito, para o castelo. Sem o brilho no olhar que iluminava a primeira vez que o caminhei, de peito cheio, orgulhoso pela tarefa que cumpria. Não, não era inteiramente verdade. O orgulho que tenho é imensamente superior.
Com as mãos presas por algemas ferrugentas, sigo o caminho. A farda mostrava que a justiça atinge todos, até aqueles que se asseguram que os outros a sigam.
Vi, com esperança, olhares tristes e desolados dos meus companheiros, os outros carcereiros. Sabia que, para eles, seria uma lenda. Alguém que, por um amor verdadeiro, desafiou todas as regras. Quantos iriam percorrer os mesmos passos que percorro hoje, não sei, mas sentia que não seria o último a pagar por este crime. Quem sabe, um dia, não sejam os senhores do mundo que percorram este caminho gasto e vazio.
Enquanto a corda me é posta à volta do pescoço, penso nela. Penso que sorri, contente. Livre. Peço a Deus, um qualquer, real ou imaginário, que ela se esqueça de tudo o que aqui sofreu. Se assim for, se para isso ajudar, que até se esqueça de mim. Com um sorriso, é assim que vou desafiar a morte. Sorrio.
Por: Miguel Brito