30 de dezembro de 2010

Revelação

Já tinha feito este trajecto, dezenas, quem sabe centenas de vezes, já não se lembrava.
Era um viajante, não dos que passeia por passear, não, ele tinha uma missão. Sempre teve. É o seu destino.
Sentiu o corpo a adaptar-se, mudar, encaixar na biologia que o rodeava, que antes o rejeitava e agora reconhecia como um dos seus.
O frio incomodou o seu corpo nu, já antes tinha sentido o vento gelado que se fazia sentir neste recanto das estrelas, mas nunca se tinha habituado.
Agitou a estranha caixa que tinha à sua frente, a mesma emitiu um sinal sonoro diferente de tudo o que existe neste mundo e abriu sozinha um dos seus compartimentos.
O ser, à falta de melhor nome, retirou o conteúdo que lhe era fornecido. Calças de ganga, t-shirt preta, casaco preto, meias pretas e boxers pretos. Uma roupa aceitável, até mesmo confortável para o corpo que agora possuía.
Vestiu-se rapidamente e caminhou. Já tinha palmilhado estes caminhos antes, eram no entanto diferentes. Onde antes existia areia e flora, agora existia uma estrada de um material nada confortável. Agitou novamente a caixa, como que reclamando pela ausência dos sapatos. Novamente o sinal sonoro e um par de ténis de marca, pretos, estava no compartimento aberto.
Respirou fundo, não sentiu o aroma a chuva recente que pairava por ali, não possuía os mesmos sentidos que os habitantes do planeta, mas o seu corpo precisava de ar e ele lá repetia o hábito do povo que visitava. Respirava então.
Caminhou, pensando, relembrando, as antigas visitas que tinha feito. Era um planeta engraçado, os seus habitantes eram curiosos e ávidos de aprender mais. Pelo menos tinham sido.
Um sorriso desajeitado nasceu no seu rosto humano. Não era a primeira vez que sorria, é certo, mas visitou poucas vezes este mundo, comparando com outros pelo menos.
Sentiu o estômago a fazer um ruído estranho. Pelos seus cálculos o corpo precisava de alimento. Era uma limitação que nunca tinha compreendido.
Olhou em volta, relembrando que antigamente as árvores de fruta repousavam calmamente naqueles campos. Nada. Aliás, já nem eram campos. Agora só via estranhas formas geométricas, construídas com um qualquer material que não parecia ser confortável.
No meio de tudo o que tinha mudado, reviu uma zona que conhecia. Uma árvore que já tinha visto há anos atrás, ou pelo menos assim o pensava, poderia ser outra, uma nova, mas isso era o menos importante. Era algo que fazia sempre que visitava o pequeno planeta. Gostava de estar sentado, encostado, a uma. Fora ali, naquele lugar, pelo menos julgava ele, que tinha ensinado, há milhares de anos, o homem a lidar com o fogo. Foi o primeiro sorriso humano que viu, quando aqueles frágeis seres sentiram pela primeira vez o brilho quente de uma chama acesa. Decidiu naquele momento que gostava destes. Havia de haver algo de bom no seu trabalho. Pelo menos quis pensar assim.
Sentou-se à beira da árvore. Pouco depois observou uma criança a brincar com um cão. Sorriu de novo. Adorava cães, havia algo neles que nunca tinha encontrado nos milhares de mundos que tinha visitado. Eram honestos, sinceros e, acima de tudo, leais.
O sorriso perdurou enquanto se lembrava da primeira vez que tinha visitado o antigo Egipto. Ficara horas na conversa com um escravo. Lembra-se que lhe tinha oferecido água e que a gratidão do homem não tinha limites para aquele acto tão simples. Gostou de conversar com o homem, até lhe deu algumas dicas sobre como poderiam construir umas oferendas em honra dos deuses que adoravam. Sabia, perfeitamente, que com aquelas dicas o homem deixaria de ser escravo, assim foi. Tornou-se no primeiro engenheiro do mundo antigo.
Sabia que não podia estar sempre a interferir, mas tinha de assegurar a sobrevivência dos habitantes deste mundo, era esse o seu trabalho. Era um trabalho cansativo, quando pensava na quantidade de mundos em que tinha de trabalhar, mas era bom no seu trabalho e com a promoção tinha vindo um maior número de experiências para controlar.
Voltou a respirar fundo. Observou a criança. Em breve, muito em breve, o mundo daquele menino iria mudar. Sabia isso, sabia muito mais até, mas sabia porque era ele que o iria alterar. Estava na hora. Assim tinham decidido os seus superiores, tinham de saber a verdade.
Levantou-se, olhou uma última vez para a dupla brincalhona que resvalava na pouca relva restante situada no cemitério de formas geométricas cinzentas.
Os dias foram passando, foi caminhando com calma, com todo o tempo do mundo, do seu e do deles, dos habitantes a quem iria revelar a verdade.
Caminhou até entrar na estação de televisão que tinha escolhido. Sabia que era um hábito que aqueles seres tinham, partilhar as refeições em frente da caixa das cores.
Ninguém o conhecia, mas ninguém o tentou impedir. Havia algo que impedia, fosse quem fosse, de dizer não aquele homem vestido de preto. Se ao menos alguém soubesse que ele não era um homem, pelo menos no sentido humano da palavra.
As televisões de todo o mundo, sem escolha dos seus donos, sintonizaram na estação escolhido pelo ser.
Com um sorriso, olhou em frente para as câmaras. E disse:
- Hoje é o fim do mundo como o conhecem – ninguém duvidou das suas palavras, todos estavam hipnotizados pelo estranho homem – Hoje é o início da Era da Sabedoria. Hoje muda tudo.
E, realmente, mudou tudo.

Por: Miguel Brito

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