O sinal sonoro marcava as 8 luas de Linker. O Richardo deveria estar a chegar. Sentei-me na poltrona de gel simbiótico e senti o meu corpo a recuperar a energia de anos anteriores. Os antigos nunca teriam acreditado que era possível sentir o que é ter 20 anos aos 85. É uma dádiva.
Olhei para a minha casa. Nunca sonhei que o futuro pudesse ser ainda mais louco que os filmes e séries especulavam. As paredes existiam conforme a minha conveniência, as fotografias eram agora obsoletas e em todas as superfícies passavam vídeos holográficos à minha escolha. O cinema morreu. Agora aparelhos 5D permitem entrar, literalmente, no mundo dos sonhos. Já ninguém quer ver um filme quando pode participar nele. As refeições foram substituídas por batidos dos mais incríveis sabores, totalmente saudáveis. A obesidade desapareceu do nosso mundo. “O que irá ele querer hoje” pensei, enquanto olhava para o marco, estava perto da 9ª lua de Linker e o meu neto não aparecia. “Deve estar em sex5d com alguma colega” pensei, relembrando-me do tempo em que aos 15 anos os miúdos fumavam às escondidas dos pais e desencantavam todo e qualquer lugar para dar uns amassos.
Senti uma vibração na cadeira. Um ecrã holográfico mostrava a cara, imberbe, do Richardo. Os seus olhos azuis brilhavam em direcção ao teletransportador. Assim que o banco de dados verificou o ADN do convidado, pude aceitar o transporte. Segundos mais tarde um jovem estava na sala de estar da minha casa.
- Olá vô – cumprimentou, sem olhar para mim – O meu pai manda dizer que este fim-de-semana não pode vir.
- Olá Richardo – Sorri para ninguém – Diz-lhe para não se preocupar.
Senti que ele já estava à procura do servidor para ir sair com os amigos no webmall. Sempre fui um neto distante e, no entanto, gostava de ter um neto presente. Pensei em como o poderia fazer partilhar algo da vida dele comigo. Pensei, pensei e pensei. Até que cheguei a uma conclusão. Saindo da sala sem ser visto, o que não era difícil, desloquei-me ao comando central da casa. Nunca me tinha habituado às portas à Star Wars. Ao entrar no centro de comando, um ecrã holográfico deu aso a um modelo virtual do engenheiro que construiu o bloco de casas na lua de Linker.
- Qual é a sua necessidade? – Perguntou robótico o engenheiro projectado
- Quero que desligue o servidor 5D
- Isso necessita da mais alta ordem de comando – pediu a projecção
- Bang – disse – Bang – confirmei o código
- Dentro de 3 horas pode activar o servidor – ordenei enquanto saía da sala de comando.
Ao caminhar pelos corredores, fui vendo vários vídeos projectados nas paredes. As casas de hoje não eram frias, solitárias nem brancas como as antigas. Há sempre cor e movimento. Ainda antes de entrar na sala já oiço os suspiros exasperados do meu neto. Faz-me lembrar quando ficava sem internet durante o download de um filme.
- Então Richardo, que se passa? – Sorri, invisível
- Estás sem ligação 5D. Porra não acredito nisto – lamentou – logo agora que a Thelma me ia – parou constrangido.
- Sabes não é por ter 85 anos que não me lembro do que é o sexo. Aliás, lembro-me melhor do que toda a tua geração que apenas o faz no mundo virtual – lancei o anzol – No meu tempo era muito melhor – sempre odiei quando os mais velhos me diziam isto, agora já percebo o porquê.
- Sim vô no teu tempo era melhor e quantas pessoas morreram graças a essa maravilhosa sensação? – Criticou.
- Se quiseres conto-te uma história. Quando a terminar, diz-me se é melhor o mundo 5D. – Sabia que tinha apanhado o peixe.
- Bem na verdade não tenho nada melhor para fazer – lamentou – Conta lá a história.
Com um sorriso dirigi-me para a poltrona de gel. Liguei os fios simbióticos à minha cabeça. Fiz a ligação às paredes. Todos os meus pensamentos seriam transformados em cores e sons ambiente, para dar vida às minhas palavras. Maravilhas do futuro.
Ainda no tempo em que os humanos viviam, apenas, no planeta terra, onde os teletransportadores não passavam de sonhos enclausurados nos livros que lia, os jovens gostavam de respirar o ar puro. Ou não tão puro, a poluição era um grande problema, mas ar, ar real, é seguro de dizer.
Lembro-me como se fosse hoje, talvez por ter sido um dia especial, talvez porque esta poltrona faz milagres, mas lembro. Tinha acabado de jantar, comida a sério e não um batido com sabor a Big Mac do já extinto McDonald's. Se te disser o que jantei, estarei a mentir. Nunca pensei que um jantar fosse uma lembrança digna de guardar, como estava errado. Olhei para o relógio, na altura em que os dias eram chamados de dias e que eram divididos em horas e não em luas. Estava perto da hora combinada com os meus amigos. Sim Richardo amigos. Pessoas com quem partilhei aventuras sem fim, pessoas que choraram no meu ombro e me deram o deles para chorar. Bem sei que hoje em dia a palavra não é usual, já não há amigos. Apenas números num mundo virtual. Não olhes para mim com essa cara, não tenho nada contra o mundo 5D, apenas gostava que o mundo 5D não tivesse nada contra o meu. Desculpa-me o sorriso. Não é educado rir sem partilhar o motivo. Lembro-me de um tempo em que os telemóveis eram o último grito. Primeiro enormes e com antenas, depois começaram a ter cores, fotografias, capacidade de vídeo enquanto se falava, saído da imaginação das tartarugas ninja, internet e por fim GPS. No dia em que ninguém tinha uma desculpa para se perder foi o dia em que o mundo das aventuras morreu. Mas continuando. O meu telemóvel tocou. Uma mensagem dizia-me para descer. Assim o fiz. Encontrei o Gustavo e o Márcio. Dois dos meus melhores amigos. Estavam com uma cara suspeita. Mandaram-me segui-los, rapidamente, e sem barulho. Quando paramos, nem queria acreditar. O Gustavo tinha roubado um carro. Sim Richardo um carro uma daquelas coisas em formato de paralelepípedo com rodas. Já os viste no museu pré-simbiose.
- Avô despacha-te que não tarda está na hora do sono reparador – lembrou-me o neto.
- Sim, claro, não vá algum de nós ter uma dor de cabeça e morrer de pânico. Sono reparador, fez o mundo um lugar de gente cobarde. – Abanei a cabeça
- Vá não sejas antiquado. Para quê ter dores quando dois raios lunares de tempo podem dar-te um dia perfeito? – Contrariou
- Porque com o sono reparador, as pessoas deixaram de dar valor ao dia perfeito. Mas sim, vou continuar a história. Vou resumir um pouco. Não vás ter uma doença rara e mortal por não ires para o banho simbiótico.
Nenhum de nós tinha a carta para conduzir o carro. Aliás, nenhum de nós tinha idade para conduzir um. Passeamos a noite inteira. Fomos apanhar uma amiga nossa. A Júlia. Ai como era bonita Richardo. Tinha o cabelo cor de ouro e uns olhos mais verdes que a lua terrestre após a terceira vaga. Lembro-me que mascava uma pastilha elástica, sabor a mentol. Quando tinha a tua idade, nada era mais bonito que uma cara bonita com hálito a mentol.
Ficamos juntos atrás do carro. Passeamos durante mais umas horas. Miúdos a divertirem-se. O que vem depois, bem já não é tão agradável. Tivemos um acidente. Na brincadeira o Gustavo manobrou mal e embateu com o pneu num passeio. O que é um passeio? No tempo em que as pessoas e os carros partilhavam o direito de ocupar a rua, os passeios garantiam, em teoria, a segurança dos que andavam a pé. Se alguém estivesse a passar ali, não estaria muito seguro.
O Gustavo e o Márcio saíram do carro. Eram os mais velhos. Eu fiquei com a Júlia. Lembro-me que a abracei e lhe disse que iria ficar tudo bem. O cabelo dela tinha um cheiro a flores. Fruto do uso de champôs. Claro que não sabes o que é, desapareceram anos antes de tu nasceres. Na altura em que a água limpava o suor do homem e não o plasma simbiótico. Bons velhos tempos. Enfim, continuando.
Eles avisaram-me que tinham de ir chamar alguém. Era o mais novo, mas o mais terrível. Logo fui incumbido de tomar conta da Júlia no lugar perigoso onde ficamos.
Minutos depois. Sim Richardo minutos. Era o nome que dávamos a pedaços de tempo. Mais ou menos como raios lunares. Posso continuar? Obrigado. Então, poucos raios lunares depois, a Júlia aproximou-se de mim. Conversa puxa conversa, senti os seus olhos a descair para os meus lábios. Aproximei-me, lentamente, como um predador que não quer assustar a presa, e beijei os seus lábios quentes. Ai Richardo, o doce sabor do mentol. É uma pena que nunca o venhas a experimentar. Mas um beijo, isso, tens tudo para o dar e vives num mundo que não existe. Faz-me lembrar um filme, sim aquelas coisas que se pagava para ver e não se participava, sobre um mundo assim, como o que escolhes viver. Matrix. Eles fizeram de tudo para fugir e destruir esse mundo, vocês hoje em dia fazem tudo para não sair dele. O beijo? Ah, claro. Desculpa. O beijo foi longo, doce, melhor que o esperado. As línguas que dançavam uma música pautada pelo bater acelerado de corações jovens. Bons velhos tempos. Lembro-me de ter aproximado as mãos do corpo dela. Que corpo Richardo. Retirei a sua camisola, ignorando os receios tímidos dela, e escolhendo os sorrisos que me convidavam a avançar, o seu peito estava protegido por um soutien vermelho, rendado. O que é um soutien? Pergunta à tua mãe mais logo, ela vai adorar que eu te tenha andado a contar estas coisas. Mas ela reclama por tudo mesmo. Continuei a retirar a roupa dela, peça por peça, olhando, envergonhado para o seu corpo. E ela fez o mesmo. De olhos fechados
Um sinal sonoro assinalava as 12 luas de Linker. Estava na hora de Richardo ir para casa. Fiquei orgulhoso a vê-lo ficar triste por ir embora, por não saber como acabava a minha história. Sei que não seria apropriado no meu tempo contar isto a um jovem de 8 trovões de Klim. O equivalente a 14 anos no tempo dos antigos. Mas os tempos são outros. Pode ser que amanhã ele queira ouvir o resto e fugir, também ele, um pouco do mundo virtual onde vive.
Por: Miguel Brito
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