28 de outubro de 2010

Lição

Finalmente era Sábado. Hoje era dia de apanhar o comboio até Évora, e sentar-me com a Luísa nos degraus do spot do Bacelo e ver os skaters cair. Vamos como sempre ficar horas na conversa, entusiasmados com o que temos em comum. Assim espero eu pelo menos.
            Como era normal avisei o pessoal que só voltava à noite, já nem me perguntavam para onde ia. O meu sorriso dizia tudo. Depois de uma semana inteira a ouvir as bocas do costume e a ser perseguido pelos idiotas do costume é o dia em que sou livre. Cheguei à estação de Santa Apolónia bem cedo pela manhã. Quem já caminhou pelas ruelas de Alfama sabe que o cheiro nesta parte de Lisboa não é igual a mais nenhum. É com isso que me identifico com Évora, é o cheiro a história. Depois de comprar o bilhete, fui beber um café enquanto esperava pela hora da viagem. Peguei, como era normal, no jornal de sempre que estava preparado para satisfazer as curiosidades dos clientes. Falavam em reforços do Sporting, li com atenção as mesmas, pois acreditava que este seria o ano em que iriamos calar os lampiões. Depois reparei numa notícia acerca de uma chamada de telemóvel do primeiro-ministro que deu uma barraca qualquer e por último um balanço da operação de Natal da GNR. Mais uns quantos mortos. Era sempre igual, bebida e condução acaba quase sempre no caixão. Era o lema do meu pai, e um dos motivos pelos quais não bebia nem uma gota de álcool. Não ajudava à minha imagem na escola. Penso que esse não era o problema, mas sim o facto de ter mais que uns quilos a mais. Sempre fui duas coisas, inteligente e preguiçoso. As duas misturadas resultam em boas notas e gordura acumulada. Não sou um deus grego como as miúdas procuram, mas também não sou um monstro que deveria estar num labirinto. Bem, há dias em que me sinto como tal.
            A viagem começou, tinha duas horas pela frente. Agarrei no livro que tinha escolhido para hoje. Falava de um rapaz que tinha sido abandonado pelo pai e que mais tarde se tinha tornado assassino pessoal do rei. Era um bom livro e com duas horas, um café e pouco barulho na carruagem foi uma óptima viagem.
            O comboio começou a abrandar, e assim fechei o meu livro, estava quase no fim e mal podia esperar pelo próximo. Arrumei as minhas coisas, deitando fora o copo de café e os papéis dos rebuçados que comi. Sempre fui guloso. O comboio parou e rapidamente saí da estação. Senti o vento gelado na cara, o mesmo ar de Lisboa, ar com cheiro de história. Com os auscultadores nos ouvidos fui ouvindo 30 Seconds to Mars enquanto me desviava das pessoas apressadas. Consultei o telemóvel, ainda nada da Luísa. Era estranho mas talvez estivesse sem rede. Como queria voltar a ver o seu sorriso, aqueles olhos castanhos derretiam o meu mundo. Era como eu, gulosa e solitária. As vantagens da internet é conhecer quem tem precisamente os mesmos interesses que nós. O seu sorriso era do mais doce que tinha visto. Talvez mais ninguém olhasse para ela duas vezes na rua, mas para mim tinha uma aura que brilhava, irradiava felicidade na tristeza profunda que era o meu mundo.
            Cheguei,bocejando, aos degraus do Bocelo.Sentei-me à espera da minha musa,questionando-me se seria hoje que teria coragem de a beijar. Sabia que ela também queria, mas a vergonha e o profundo receio de alguma forma a desiludir e terminar com esta ilusão, fazia com que voltasse sempre para Lisboa sem conhecer o calor dos seus lábios.
            Já tinham passado 40 minutos desde a hora de sempre, e nem uma chamada no telemóvel. Não era normal. Resolvi telefonar, embora com algum receio de parecer paranóico ou possessivo. Nada. Tentei mais duas vezes e nada. Apesar de saber onde ela morava, não queria ir tocar à campainha. Podia aparecer o pai dela, e tinha depois em mãos uma tarefa complicada. Assim continuei a ouvir música, olhando para a zona dos skaters. Estavam estranhamente parados. Mais do que uma vez, os vi a olhar para mim, e nasceu no meu peito o receio imediato de que me viessem chatear. Nunca tinha tido problemas em Évora, a Luísa dizia que era do tempo. As pessoas eram mais solitárias e menos dadas a confusões. O meu professor de psicologia concordava com ela.
            Gotas de suor caíram ao longo do meu rosto, quando os vi a caminhar em minha direcção. Agarrei no telemóvel e comecei a escrever uma mensagem para a minha atrasada companhia.
-Então Luísa já te esqueceste de mim? Estou à tua espera nos degraus. Diz algo! Beijos. – Enviei.
            Nunca pensei em ficar aborrecido por ser rápido a enviar mensagens, mas a verdade é que o grupo ainda se aproximava de mim quando eu já tinha arrumado o telemóvel. Os neurologistas dizem que quando nos vemos numa situação de perigo eminente só temos duas reacções possíveis. Ou fugimos ou lutamos. Eu fugi, agarrei nas minhas coisas e comecei a correr. Durante a corrida ouvi gritos a pedirem que parasse, mas nunca o fiz. Já só tinha um perseguidor, percebi que ele não ia desistir e então parei. Cerrei os punhos encarei o mitra.
-Não tenho dinheiro! – Informei com cara de parvo, na realidade sentia-me parvo.
- Calma meu! Tu não és aquele miúdo de Lisboa que se vem abancar com a Luísa ali nos degraus e se riem das nossas quedas? – Perguntou com uma cara estranha
- Costumamos ficar ali sim, mas não nos rimos de vocês! – Menti com medo
- Não faz mal, é um desafio! Quando não se riem é porque estamos a fazer bem! Mas não era por isso que vínhamos ter contigo. – Disse com uma estranha tristeza no olhar.
- Então era porquê? – Perguntei desconfiado e incomodado com a cara do rapaz.
- Sabes, nós conhecíamos a Luísa lá da escola. Andava sempre sozinha, mas isso era porque gostava muito de ler e de ser ela própria e aqui ninguém tem paciência para conhecer quem não seja da mesma onda. Mas mesmo assim gostávamos dela. Mais que uma vez nos safou trocos para um maço de tabaco. Dizia que ainda nos havia de matar. – Explicou-me
- Espera lá – Disse com o estômago estranhamente nervoso – Porquê é que estas a falar da Luísa no passado? –Perguntei genuinamente confuso.
- Era por isso que estava a correr atrás de ti. A Luísa teve um acidente de carro ontem à tarde. Ela e a mãe acabaram por morrer. – Disse sem conseguir olhar para mim.
            Não esbocei qualquer resposta. Sabia que era estranho não ter notícias dela, mas pensei que estava sem saldo ou algo parecido. Talvez até de castigo por ter discutido com o pai no início da semana. Mas morta? Corri o mais depressa que pude para longe do augúrio da desgraça que tinha sido aquele rapaz. Fui até à casa dela, e o que vi. Não tenho palavras para descrever. À frente do portão da casa, estavam várias coroas de flores. Fotos da Luísa e de uma senhora que compreendi ser a sua mãe. As lágrimas que corriam pelo meu rosto em nada se comparavam ao vazio que sentia dentro de mim. Só conseguia pensar no beijo que não lhe tinha dado e nas brincadeiras que tinha tido medo de ter. Pensei em tudo o que perdi por não ter coragem. Foi o meu primeiro amor. Dizem que é único, tenho a certeza que não amarei mais ninguém como amei aquele anjo de olhos castanhos e sorriso de mel. Como me arrependo agora de não ter arriscado ser feliz. 


Por: Miguel Brito

2 comentários:

Fiacha disse...

Fogo Miguel este conto está forte, logo eu que sou um lamechas.

Muito bonito.

Miguel disse...

Obrigado Paulo :)

Foi um conto complicado de escrever, mas era uma estória que merecia ser contada :) foi, também, o meu primeiro trabalho com alguma pesquisa :)